A Resolução Normativa nº 621/2024, publicada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), marca uma mudança significativa no panorama da saúde suplementar brasileira. Aprovada no início de 2024, a nova regulamentação permite a criação de um sandbox regulatório para estudar a comercialização de planos de saúde com cobertura exclusivamente ambulatorial, voltados para consultas eletivas e exames diagnósticos, sem obrigatoriedade de inclusão de atendimentos de urgência, emergência ou internações hospitalares.
Essa medida gerou um amplo debate entre especialistas, representantes do setor de saúde, entidades de defesa do consumidor e autoridades públicas. De um lado, defensores da Resolução afirmam que ela pode ampliar o acesso aos serviços de saúde privados para uma parcela da população que, atualmente, não consegue arcar com os custos de um plano de saúde tradicional. De outro, críticos alertam para o risco de precarização da saúde suplementar e para o surgimento de produtos que não atendem às reais necessidades dos consumidores.
A possibilidade de planos com cobertura restrita é vista por muitas entidades de defesa do consumidor como um retrocesso. Segundo o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), a Resolução 621/2024 fragiliza o sistema regulado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), permitindo a oferta de produtos que, embora mais acessíveis financeiramente, deixam o consumidor vulnerável em situações de urgência ou necessidade de internação hospitalar.
Para essas entidades, a proposta ignora a natureza imprevisível das necessidades de saúde. Ainda que um plano ambulatorial possa atender às demandas mais corriqueiras, como consultas com especialistas e exames de rotina, ele não oferece suporte em casos de maior gravidade, como acidentes, crises agudas de doenças crônicas ou complicações inesperadas. Na prática, os consumidores podem ser levados a acreditar que estão protegidos, quando na verdade estarão expostos a riscos significativos.
Outro ponto de preocupação é o possível impacto dessa medida sobre o Sistema Único de Saúde (SUS). Embora parte do governo veja na Resolução uma forma de aliviar a demanda sobre o sistema público de saúde, oferecendo uma alternativa de atendimento para casos menos complexos, existe o receio de que, ao contrário, o SUS acabe absorvendo os atendimentos mais caros e complexos, que os planos ambulatoriais não cobrem. Isso poderia levar a uma sobrecarga ainda maior do sistema público, com impactos negativos tanto na qualidade quanto na agilidade dos serviços prestados.
Ademais, a regulação desses novos produtos é um desafio. Há receios quanto à transparência na oferta dos planos e à compreensão dos consumidores sobre o que está ou não incluído na cobertura. A linguagem técnica frequentemente utilizada nos contratos de planos de saúde pode dificultar o entendimento pleno por parte dos usuários, especialmente os com menor grau de instrução. Isso pode resultar em surpresas desagradáveis no momento em que os serviços forem necessários.
Além disso, especialistas em saúde pública alertam que a ampliação dos planos ambulatoriais pode comprometer o princípio da integralidade do atendimento, um dos pilares da saúde no Brasil. A fragmentação do cuidado, com a divisão entre atendimento básico e de alta complexidade, pode prejudicar a continuidade do tratamento e aumentar os custos totais de atendimento.
A Resolução Normativa nº 621/2024 também reabre a discussão sobre a função social dos planos de saúde e o papel do Estado na regulação do setor. A ANS, ao permitir a oferta de planos mais restritos, precisa assegurar que a população esteja bem informada sobre as limitações desses produtos e que não haja práticas abusivas por parte das operadoras. A proteção ao consumidor deve ser um dos pilares da regulação, evitando que o desejo de ampliar o acesso acabe por gerar uma falsa sensação de segurança.
No âmbito do governo, há uma expectativa de que esses planos sirvam como uma opção intermediária para os cidadãos que atualmente dependem exclusivamente do SUS. A ideia é que, com a possibilidade de realizar consultas e exames de forma mais rápida na rede privada, haja uma redução da pressão sobre os serviços públicos. No entanto, essa estratégia depende de uma articulação eficiente entre os sistemas público e privado, bem como de mecanismos eficazes de fiscalização.
Em termos práticos, os novos planos ambulatoriais devem atender principalmente ao segmento de baixa renda, que frequentemente enfrenta dificuldades para acessar os serviços do SUS devido a filas e falta de infraestrutura. Ainda assim, é fundamental que esses planos não se tornem um instrumento de segmentação do acesso à saúde, onde os mais pobres tenham acesso apenas a serviços limitados, enquanto os planos mais completos fiquem restritos às camadas mais abastadas da população.
O histórico da saúde suplementar no Brasil mostra que a regulação precisa ser firme para evitar abusos e garantir que os interesses da população estejam protegidos. A Lei nº 9.656/1998, que rege o setor, estabeleceu regras importantes para a proteção do consumidor e para a qualidade dos serviços prestados. A flexibilização permitida pela Resolução 621/2024 deve ser acompanhada de perto para que não represente uma ruptura com os avanços conquistados nas últimas décadas.
Em suma, a Resolução Normativa nº 621/2024 da Anvisa introduz a possibilidade de um novo modelo de plano de saúde no Brasil, com foco na cobertura ambulatorial e preços potencialmente mais acessíveis. No entanto, essa iniciativa levanta uma série de questionamentos quanto à eficiência, à transparência e à justiça do sistema de saúde suplementar. É essencial que o debate continue e que as medidas de regulação e fiscalização sejam fortalecidas, garantindo que os direitos dos consumidores sejam preservados e que o acesso à saúde de qualidade seja uma realidade para todos os brasileiros.
As implicações da Resolução 621/2024 ainda estão sendo observadas. A ANS terá um papel decisivo na condução dessa nova fase da saúde suplementar, sendo responsável por monitorar os efeitos da medida e propor ajustes quando necessário. O desafio é grande: criar condições para a inclusão de mais pessoas no sistema privado, sem comprometer a segurança, a qualidade e a integralidade do atendimento.
Portanto, o futuro dos planos ambulatoriais no Brasil dependerá não apenas da adesão dos consumidores, mas principalmente da capacidade do Estado de garantir que essa nova modalidade contribua para um sistema de saúde mais justo, equilibrado e eficiente. Caso contrário, corre-se o risco de ampliar desigualdades e comprometer a credibilidade da saúde suplementar no país, de um lado; e a integralidade do atendimento no sistema público.